A aura da arte

Inteligência Artificial no setor de voice over

Recentemente o sindicato dos atores dos EUA (Screen Actor’s Guild) fez um acordo com a empresa Replica Studios liberando o uso de Inteligência Artificial no setor de voice over, mais precisamente em projetos de video game. 
Em 2023 o sindicato dos atores fez uma greve que durou 118 dias, paralisando o setor que reivindicava, entre outros tópicos, a proibição do uso da IA no campo do entretenimento. 
Foi a greve mais longa na história de Hollywood. Após as negociações, foram aprovados: aumento do salário dos atores, bônus para atores que estão fazendo sucesso em projetos para streaming e limites contra o uso da inteligência artificial. 

Ecos de voz

Mesmo após estas negociações, esse novo acordo parece não beneficiar os atores de voz como beneficia os artistas de Hollywood. Isso porque a empresa Replica Studios conseguiu autorização para que as vozes de dubladores e outros profissionais da área tenham suas versões digitais. Isso leva os profissionais de voz acreditarem que suas vozes podem ser clonadas para uso posterior, inclusive em projetos que eles não realizariam. E Isso levanta uma série de dúvidas e inseguranças: 

• os atores de voice over que já têm uma grande quantidade de material gravado não serão mais contratados para novos trabalhos pois a agência já possui material suficiente para replicar a sua voz em projetos diferentes?
• como ter um contrato que proteja os atores de voice over para que eles não tenham sua voz utilizada em projetos que nunca desenvolveriam e sem receber nenhum direito pelo uso de sua voz?

Este acordo que foi firmado nos EUA irá, provavelmente, diminuir o número de gravações que um artista de voice over realiza, implicando em uma perda de trabalho mas também em uma perda de contato com a profissão: Para um locutor/dublador gravar em estúdio é um exercício diário. É o que todos nós profissionais de voice over buscamos: ter pelo menos uma sessão de gravação por dia. Diminuir as nossas chances de estar no nosso ambiente de trabalho é preocupante. O contato humano ou ao menos auditivo (se estivermos em nosso próprio estúdio) com o diretor, cliente, produtor e engenheiro de áudio é fundamental para seguirmos evoluindo em nossas carreiras. É a partir desse encontro com profissionais de áudio e artistas que temos a chance de explorar novas maneiras de usar as nossas vozes sob diferentes perspectivas. Mas, me parece que a questão é exatamente essa. Trocar o contato humano por cópias robóticas das nossas próprias vozes no intuito de evitar pagar pelas sessões de gravação e os devidos direitos de uso da voz. 

Sopro de voz

Não podemos nos esquecer que a voz tem o poder de nos conectar a uma situação. O profissional de voice over é uma das pontes que existem entre o público e a narrativa de uma obra (seja ela artística, comercial ou de puro entretenimento). Isso só é possível pois algo de nós se reconhece na melodia daquela voz, se reconhece no seu caráter único, na modulação dos sentimentos que são trazidos à tona. 

Estamos não só segregando os profissionais de voz de seu trabalho, mas também afastando o público de uma conexão profunda com algo tão etéreo como a arte. Como diria Walter Benjamin: “o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é a sua aura“. Assim como as vozes começarão a ser em série, sem ter um sopro de unicidade, nossas experiências com a arte que elas vociferam também irão se serializar e acabar sendo apenas um eco de uma experiência já vivenciada.